Diário…
Que queres que te diga?! Isto de te tratar por querido ainda me custa. Quererem que te trate como se fosses alguém importante para mim, em quem confio, de quem gosto?! É um pouco demais.
O rapaz lá pegou no boneco de saia e voz irritante. Pegou-o pela cabeça. Pareceu-me ouvi-lo resmungar alguma coisa do género “oh rapaz, tem lá cuidado! Irra que dói!”
Confesso-te que tive pena dele. A queda foi grande, bateu com a carola, como ele diz, e ainda por cima pegam-lhe assim sem cuidado nenhum. Tive vontade de gritar que fosse mais meigo com ele…não que eu me preocupe com aquele boneco, mas caramba há que ter um pouco de compaixão.
Isto de estar assim sem voz e presa ao camarão deixa-me irritada.
“Não te irrites boneca! Isto já passa. Estou habituado a caroladas bem piores.” Foi o que ouvi vindo do outro lado, de cima do tal torno. O despautério daquele boneco de saia e voz irritante a falar para mim. Boneca?! Qual boneca?! Se não fosse por estar presa a este camarão eu tinha-lhe dito a boneca. Marioneta! Sou uma marioneta!
O rapaz até parecia estar a perceber o que eu estava a sentir. Largou-o em cima do tal torno e pegou em mim com delicadeza. Percebi-o perfeitamente num “que belas bochechinhas! Já estás bem rosadinha. Vamos lá tratar dessa cruzeta!”
O atrevido do boneco estava para lá deitado. Coitado. Todo amarfanhado. Por mais irritante que seja não merecia estar assim. Só entre nós que ninguém nos ouve…ele até tem um ar engraçado!
O rapaz arranjou-me uma cruzeta nova. Tinha para lá nas prateleiras umas ripas de madeira e uns fios de nylon. Fez uma cruz. Espetou um prego no meio dela. Meteu em cada uma das quatro pontas um camarão e enfiou os fios. Sinto-me muito melhor agora que os prendeu às mãos e aos pés. E do camarão do meio da cruzeta fez descer um fio até à minha cabeça. Agora já está bem levantada e posso rodá-la.
“Estás a ficar bonita. Daqui a pouco já danças aí pela oficina!”
É que nem deitado e de carola dorida fica calado! Mas a verdade é que até o achei simpático. Um querido…
Não. Não penses que te estou a contar coisas da minha vida. Foi só um desabafo.
Por hoje chega que já me fizeste falar de mais.
Atelier de costura, “perdi-me no dia”
Estimado diário!
Ouvi esta palavra hoje de manhã quando o rapaz pegou em mim. Entrou outro lá na oficina e disse-lhe “leva-a com cuidado. Essa tem que ser bem estimada!”
Gostei da palavra. Es-ti-ma-da. Estimada. Não sei bem o que quer dizer, mas soa bem. Estimado. Hoje ficas assim.
Estimado diário.
O rapaz trouxe-me para este sítio maravilhoso. Há tecidos, fitas, rendas, tules, fios, lãs. De todas as cores. Até há uma caixa com uns brilhantes. A senhora de cabelos cinzentos chama-lhes lantejoulas. Nem sabia para onde me virar. O rapaz pousou-me num tripé e esticou a cruzeta até ficar pendurada num tubo junto da parede ao pé da senhora de cabelo cinzento.
“Hoje vamos tratar da tua roupa. Está muito estragada. Vamos lá tirar isto tudo fora.”
Acho que as minhas bochechas ficaram da cor das bochechas do boneco de saia e voz irritante: vermelhas! Nem quis acreditar que aquela senhora me ia deixar assim nua à frente daquele rapaz!
“Andor, andor, rapaz! Que tens mais que fazer. Não tens um Roberto para restaurar? Andor!”
Gosto dela. É uma senhora muito querida. Despiu-me com muito cuidado e tapou-me com um paninho de lã. Disse-me que não queria que me constipasse! Acho que me fugiu um sorriso.
Coitado do boneco de saia…ela disse que era Roberto. Sim. Agora já me lembro.
Lembro-me de o ouvir dizer alguma coisa assim. Que era Roberto. Roberto. É um nome engraçado. Rrrrrrrroberrrrrrto. É assim que soa com a vozinha irritante.
Já quase me tinha esquecido dele. O rapaz deve estar a arranjá-lo. E bem precisa. Tinha as mãos todas lascadas. E a roupa estava uma desgraça.
Não. Não estou preocupada.
Olha… Não se pode falar contigo que achas que podes meter o bedelho onde não és chamado.
Sandra Lima – Entrelinhas, Letras e Histórias